sábado, 22 de maio de 2010

SEM EIRA NEM BEIRA

Às 6 da manhã o galo canta e Tião acorda para mais um dia de trabalho no campo. Abre a janela do seu quarto e deixa os tímidos raios de sol ocupar o mesmo. Vai à cozinha e - como de costume - põe a água no bule enquanto sua mulher prepara a mesa. Tião senta-se e saboreia um delicioso café da manhã. Pega sua trouxa, sua enxada e vai para o campo.
“Que dia lindo” pensa Tião, na beira do rio, a caminho de sua plantação. Nela chegando, começa a arar o solo, ao mesmo tempo em que observa as calmas águas do rio, “é um espelho reluzente” pensa ele. Mais tarde, chega seu filho com uma refrescante limonada. O pai afaga a cabeça do garoto e da uma enorme golada no suado copo.
O momento entre pai e filho é interrompido por dois homens vestidos socialmente. “Quem serão esses?” pensam Tião e seu filho. A esposa de Tião observa de longe os dois homens abordarem seu marido e filho, “Será coisa séria?” pensa ela. Os dois se vão antes que ela chegue até o local. A face desolada de Tião faz com que sua mulher se desespere internamente, quase a impedindo de perguntar o que se passara.
Na manhã seguinte, Tião acorda, abre a janela e observa o céu nublado e o rio turvo. Mais tarde, com sua mulher e filho, chega à beira do rio com dez dos cem passos antes necessários. Entrega-os aos dois homens vestidos socialmente. Observa-os partir no barco. Na medida em que as águas do rio tomam o pequeno espaço de terra em que Tião se encontra, os dois homens retornam com o barco. Tião embarca. Deixa para trás sua casa e quase todos os seus pertences. De longe, durante o trajeto pelo rio, Tião avista as enormes comportas, que cospem água freneticamente. O pensamento de Tião remete a todos os momentos felizes que vivera com sua família no local agora submerso. “Perdi tudo o que eu tinha. Perdi tudo o que eu era”, pensa Tião, antes de se jogar nas águas do rio Paraná para nunca mais ser visto novamente.

O PASSARINHO NÃO TRABALHA

Empregada no Banco do Brasil, Béia – apelido dado pelos colegas de trabalho – era o ápice do funcionário exemplar. Entregava todos os relatórios antes do tempo, era exímia no atendimento dos clientes e era candidata preferida ao cargo de gerente da agência.
“Não devo ter as expectativas altas, pode ser que não aconteça”, era o pensamento constante de Béia, que perdia o sono pensando na promoção. Não dava atenção ao marido e menosprezava as necessidades dos filhos, tinha a mente completamente voltada ao trabalho.
Esta falta de atenção à família, na verdade, já acontecia há muito tempo, mesmo antes da possibilidade de promoção. Béia sempre se focou apenas no serviço, sob pretexto de que assim alcançaria uma condição melhor, e com isso, poderia passar mais tempo com sua família, mas a verdade é que o desejo de ser reconhecida era antigo, ser bem sucedida sempre foi o maior gol de sua vida.
Enfim, numa manhã enquanto atravessava a rua que dava ao banco onde trabalhava, Béia avistou, dentro deste, uma enorme faixa vermelha, linda, reluzente, com lantejoulas que diziam “PARABÉNS, BÉIA, NOSSA NOVA GERENTE”. O susto e felicidade foram tão grandes, que Béia estacou, no meio da rua. Os pensamentos “Meu Deus! Que felicidade! Até que enfim fui reconhecida pelo meu esforço! Finalmente terei liberdade no trabalho! Finalmente terei tempo para minha família!”, foram os últimos que teve, antes de ser atingida em cheio por um caminhão de bombeiros, lindo, novo, reluzente. Morreu ali, em pedaços, Béia, cuja família não chorou no velório nem tão pouco sentiu falta.

domingo, 16 de maio de 2010

Helena de troça

Helena está na fila de um banco, quando, de repente, um indivíduo, atrás da fila, se sente mal. Devido à experiência com seu marido cardíaco, tem a impressão de que o homem está tendo um enfarto. Em sua bolsa há uma cartela de medicamento, que poderia evitar o perigo de acontecer o pior.
Helena pensa: “Não sou médica – devo ou não devo medicar o doente? Caso não seja problema cardíaco – o que acho difícil -, ele poderia piorar? Piorando, alguém poderá dizer que foi por minha causa – uma curiosa que tem a pretensão de agir como médica. Dou ou não dou o remédio? O que fazer?”.
A tensão e a dúvida rasgam Helena ao meio, os poucos segundos que ela dispõe para tomar uma decisão parecem estender-se a horas. “O que eu faço? O que eu faço?”, ela repete freneticamente em pensamentos, tentando achar, desesperadamente, resquícios de lembranças sobre ocasiões semelhantes para que nelas pudesse apoiar sua decisão.
A iluminação não vem. Helena observa agora desesperada, o homem ajoelhar-se e apoiar uma mão no chão e outra no peito, desfalecente, em abomináveis grunhidos de dor. “Meu Deus! Vai morrer”, pensa Helena, que mais por instinto do que por decisão tomada, corre até o homem. Sem pensar, e de supetão, tira comprimidos de sua bolsa e lança-os na garganta do indivíduo, ao mesmo tempo em que um médico se manifesta, gritando para que todos saiam da frente, alegando que o homem está tendo um ataque cardíaco. “Ufa! Que alívio!”, pensa Helena ao ouvir tal alegação, “Não sei o que faria se tivesse feito algo que não devia”. Ela informa ao médico que acaba de dar comprimidos cardíacos para o homem. O médico a parabeniza pelo feito heróico, tirando-lhe das mãos a cartela de comprimidos para checar a dosagem.
“Salvei a vida deste homem. Ele teria morrido aqui e agora, não fosse por mim”, ares de salvadora tomam Helena que jamais sentira tanto orgulho de si mesma. Seu momento sublime, no entanto, é interrompido por um agudo grito de dor vindo do homem no chão e um sonoro “Meu Deus” vindo do médico, que se lança sobre esse, iniciando técnicas de ressusitação. "Meu Deus, que foi que eu fiz?" pensa Helena, ao ver, caída aos pés do médico, a cartela de viagras que trazia na bolsa, junto aos medicamentos cardíacos de seu marido.